terça-feira, 19 de junho de 2012

apática

Pulou duas vezes. Riu-se uma. Normalmente quando estava nervosa fazia-no vezes sem conta. Hoje estava-o demais. Porquê? Nem ela sabia bem. Acordou com o um nó. Durante o almoço não o desatou. No jantar já era tarde, o nó tinha-se torcido e nada descia pela garganta até ao estômago. Tentou vomitar mas já nem isso conseguia. Deitou-se, fechou os olhos e dormiu. Quando acordou o nó tinha desaparecido. Mas com o nó foram mais coisas. Indecisões, medos, nervosismo, gritos, sorrisos, sentimentos, amor, felicidade, tudo. Ficou apática.

N.Vieira

segunda-feira, 18 de junho de 2012

a(s) pergunta(s)

"Achas que sou má pessoa é?", perguntou. Já estava farto das suas suposições precipitadas. Esta era a primeira vez que lhe perguntava directamente, mas no fundo já tinha ouvido esta questão vezes demais no seu interior. Não se tratava de ser má pessoa ou não, até porque na realidade não o era. Tratava-se de ser uma pessoa diferente, especial. Partilhava de uma atitude oposta à sua. Não queriam coisas semelhantes há algum tempo. Já não precisava de se questionar sobre o que faltava. Ontem enquanto lavava a loiça fez-se luz. Tinha medo daquilo que podia fazer para estragar aquilo que tinham. Tinha receio de que um acto tão vulgar pudesse mudar o rumo à coisa. Ele sim sentia-se a má pessoa. Porque não falava, porque guardava as coisas no bolso das jeans apertadas e só as tirava quando fosse extremamente necessário. Mas tinha de responder. Não por si, por ela. "Não, aqui não há más pessoas... há pessoas diferentes, que têm opiniões opostas e medos distintos". Sentiu-se indefeso. Recordou a indefesa de um passado próximo. Pegou no casaco, passou a mão pelo cabelo, beijou-lhe a testa e saiu. Hoje já não havia nada por dizer. Quem sabe amanhã... Dizem que as manhãs trazem sempre palavras novas.

N.Vieira

sábado, 16 de junho de 2012

o copo

Auuu. O copo partiu-se. Tinha-o na mão. Agarrava-o levemente... Quando deu por si já estava no chão. Mil e um pedaços. E agora? Como os ia apanhar? Estava rodeada de pedacinhos pequeninos que pareciam impedir a sua movimentação. Mas, num segundo olhar, percebeu que se tentasse era possível. Contornou cada pedaço do vidro partido. Ainda pisou um pedacinho solto que por ali andava. Auuu. Continuou. Ficar parada ia aumentar a dor e piorar a situação. Pegou na vassoura e na pá. Apanhou cada pedaço com delicadeza. Terminou. Respirou fundo. 

N.Vieira

sexta-feira, 15 de junho de 2012

o bafo mais longo

Mordeu o lábio. Acendeu um cigarro. Deu o bafo mais longo dos últimos tempos. Fazia-no quando negava se passar algo. Fazia-no como acto de frustração para com ele. Não queria olhar para si. Custava cada vez que imaginava a distância. Sempre se fez de forte, dizia que aguentava tudo. Mas, naquele momento, o seu muro de Berlim quebrava. Mostrava a sua vulnerabilidade. Culpava-se por isso. Nunca foi "o" peso, e não era agora que o iria ser. Cinco breves minutos de si. Chegaram ao fim. Ergueu o muro, apanhou os pedaços e voltou a po-lo no lugar. Deu o último bafo no cigarro, igualmente longo ao primeiro. Voltou-se para ele e sorriu. "O quê? Não se passa nada. Estou bem, como sempre...".

N.Vieira

segunda-feira, 11 de junho de 2012

agarra-me

Agarra o meu corpo. Leva-o o para longe. Toca-lhe como se nunca tivesses tocado nada no mundo. Beija as minhas mãos. Agora pousa-as como pousas um copo de cristal. Pisa os meus pés como pisaste o chão da primeira vez, com delicadeza e sofisticação. Mas não os pises a medo. Encosta-te ao meu ombro como te encostaste no ombro da tua mãe quando te partiram o coração. Relembra o que tens a relembrar mas depois volta aqui, a este momento. Deslumbra a minha boca como o primeiro dia em que deslumbraste o corpo de uma mulher. Fixa este momento. Não o percas. Volta a agarrar-me. Volta sentir, mas agora rápido e devagar ao mesmo tempo. Volta a levar-me daqui. 

N.Vieira

domingo, 10 de junho de 2012

madrugada

Eram cinco e meia da manhã. E ele ainda não tinha chegado. Mil e uma questões se levantavam. Várias dúvidas surgiam ao mesmo tempo. Não queria dramas. Nunca os aguentou, principalmente agora. Tinha-se dado. Revelou-se para aquele mundo. Não pensou duas vezes. Mas quando chegavam os atritos o gelo derretia. Ficava a descoberto o que escondia com unhas e dentes. A vulnerabilidade falava mais alto. Gritou. O acto pareceu-lhe o mais indicado. Libertou-se por uns segundos. Decidiu finalmente fechar os olhos. Só os ia abrir amanhã. Adormeceu.

N.Vieira